6 de fevereiro de 2008

Música moçárabe: um enigma histórico? (Cont.)


Os moçárabes participavam também da cultura que os rodeava; progressivamente, aprenderam a língua árabe e assimilaram as suas tradições poéticas. Foi da confluência da antiga canção moçárabe com a poesia árabe clássica que nasceram os géneros poético-musicais mais característicos do Ândalus medieval, o zajal e o muwaxxah. A sua temática tanto podia ser profana, com frequente alusão ao convívio alcoólico, como assumir contornos místicos, de linhagem sufi. Ouviremos exemplos de ambas as situações. No mundo islâmico não se usava notação musical, pelo que só conhecemos as melodias de algumas canções, cujo texto foi escrito nos séculos XII ou XIII, porque elas foram exportadas para o norte de África e para o Próximo-Oriente; as versões que aqui se apresentam representam, por isso, várias camadas de reinterpretação e sedimentação musical, ocorridas entre o século XII e o século XX.

Finalmente, os moçárabes assumiram um importante papel de intermediários culturais entre o mundo cristão e o mundo islâmico. É interessante constatar que foi na corte de um dos mais activos combatentes dos muçulmanos, o rei castelhano Afonso X, o Sábio (falecido em 1284), que se produziu o mais claro exemplo de assimilação da cultura musical árabo-andaluza. Isso ocorreu nas célebres Cantigas de Santa Maria, um repertório em honra da Virgem escrito em Galego-Português em que se usa a forma poética do zajal árabe e hebraico, com as correspondentes formas musicais, provavelmente representativas da antiga cultura moçárabe.

Ouviremos uma destas cantigas relatar um milagre ocorrido em Faro durante o período islâmico, milagre que sustenta a identidade moçárabe da cidade (colocada sob a invocação de Santa Maria), posta em perigo quando daí retiraram a imagem da Virgem. Ouviremos também contar milagres do santuário moçárabe de Terena (Alentejo), com música em que se detecta, por exemplo, um típico ritmo árabe de cinco tempos. Alfonso X não hesitou em usar música culturalmente híbrida para promover a sua devoção mariana, talvez porque o interesse musical supere as fronteiras político-religiosas. Para além das divergências de fé, Alfonso X soube reconhecer, com a sua capacidade de assimilação cultural, a fundamental unidade do espírito humano.

Bom concerto!

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