NOTAS AO PROGRAMA
Na Lisboa do tempo de D. João III a música
era rica e diversa. Restam, contudo, poucos testemunhos da mesma, já porque só
alguma da música era escrita, já porque muitas das fontes se perderam por
desuso, incúria, ou acidente (mormente na voragem do terramoto). Fiel ao seu
propósito de recuperar a memória do património musical mais antigo, as Vozes
Alfonsinas propõem neste concerto revisitar repertório, até há pouco inédito,
da Capela Real e da Sé de Lisboa, juntando-o com canções profanas e peças
instrumentais que circulavam na corte.
Duas
fontes assumem neste programa especial relevo: o primeiro livro impresso na
Península Ibérica com repertório vocal adaptado para tecla, autorizado em 1536
e publicado em Lisboa em 1540, e um fragmento medieval que correspondente ao
Ofício lisbonense para a trasladação de S. Vicente, impresso em 1536. No mesmo
ano foi também publicado o livro El
maestro, do vihuelista Luís Milán, dedicado ao rei de Portugal, pelo que as
composições aí incluídas foram certamente ouvidas em Lisboa.
Em
1992, Alejandro Iglesias anunciou a descoberta de uma cópia da Arte novamente inventada pera aprender a
tanger de Gonçalo de Baena. Apesar de haver notícia da respectiva licença
de impressão, dada em 1536 pelo rei D. João III — a quem o volume é dedicado —,
o livro julgava-se perdido, ou nunca concretizado. Tendo-se localizado o volume
na Biblioteca do Palácio Real em Madrid, a investigadora Tess Knighton foi a
primeira a examiná-lo em profundidade, produzindo um estudo exemplar; mas a
edição completa do livro só em 2012 foi publicada pelo CESEM em Lisboa,
incluindo quase três dezenas de peças até agora desconhecidas, a que foi
finalmente devolvida a oportunidade de soar, não só no seu arranjo para tecla,
mas também em versões para vozes, laboriosamente reconstituídas.
Destacam-se
peças atribuídas a Gonçalo de Baena, músico de origem sevilhana residente na
corte lisbonense desde c. 1500, e seu filho António, que figura junto com dois
irmãos em documentos datados de 1515 e 1516, nos quais todos eles são
identificados como executantes de viola de arco (viola da gamba). As Vozes
Alfonsinas fizeram a estreia moderna de algumas destas peças em 2012, e neste
concerto ampliam esse esforço.
Entretanto,
em 2010 foi descoberto, no Arquivo da Casa da Moeda, um fragmento medieval com
enorme importância histórica: o único testemunho sobrevivente da liturgia
medieval da Catedral de Lisboa com a sua música. Faz parte do ofício que
comemora a trasladação lisboeta dos restos de S. Vicente em 1173, desde então
padroeiro da cidade.
O resto do ofício foi impresso, sem
música, em 1536, como parte do Próprio dos Santos que se quis salvaguardar na
liturgia da Sé apesar da adopção, nesse mesmo ano, do rito romano; contém uma
narração dos factos de 1173 (a invenção e trasladação das relíquias), diferente
da narrativa oficial de mestre Estêvão. Em 2013 foi feita uma edição crítica
completa (texto e música), tendo em conta o impresso quinhentista. O ofício
parece estar relacionado com a campanha de promoção do culto vicentino na Sé
pelo rei D. Afonso IV, em meados do século XIV; foi cantado na Sé todos os anos
a 15 de Setembro, até à época de Filipe II, altura em que foi substituído por
outro formulário. Desde então não se cantou em Lisboa o Ofício antigo, o que
torna este concerto um marco de importância excepcional.