11 de outubro de 2008

VOZES ALFONSINAS: REALIZANDO UM IDEAL SONORO


Em que medida é que as Vozes Alfonsinas se distinguem dos restantes grupos dedicados à música medieval e renascentista? A resposta está no resultado sonoro.


É verdade que na base desse resultado, está uma pesquisa original sobre as mais antigas fontes musicais da Península Ibérica e uma selecção criteriosa do repertório; mesmo quando não se trate de peças inéditas, o que tem sucedido amiúde, muitas transcrições foram realizadas ou reformuladas de novo, e recorreu-se, por mais de uma vez, à leitura directa a partir de facsímiles dos documentos. Os programas são construídos tendo em conta, não só o ritmo do espectáculo, como a coerência histórica da sequência musical. Tudo isto pode ser distintivo face a grupos que recorrem essencialmente a materiais em segunda mão, e os não integram numa perspectiva cultural mais vasta; mas a verdade é que as Vozes Alfonsinas também soam de forma distintiva.


O que poderá determinar esta sonoridade? Naturalmente, têm um papel de relevo as qualidades individuais dos músicos que em cada momento actuam: a destreza e sensibilidade dos instrumentistas, o timbre e a elasticidade das vozes... e nesse aspecto, os membros das Vozes Alfonsinas são excepcionais. No entanto, há algo que une estas qualidades e as orienta para fins comuns, permitindo que uma imagem sonora consistente se desprenda do conjunto.


Invisível, verbalmente desarticulada, frequentemente incompreendida até por quem a segue, a direcção musical sugere ideais sonoros, que ao longo dos ensaios, dos concertos, das gravações, se vão apurando e penetrando a interpretação. O tempo, a dicção, a afinação, o fraseado, a articulação rítmica, a variação improvisatória, as fusões e os contrastes, são aspectos cujo controle colectivo depende da partilha de um ideal sonoro comum.


Contrariamente à generalidade dos grupos de música antiga, as Vozes Alfonsinas colocam o texto e a voz no centro do trabalho interpretativo; nisto desvalorizam a paleta caleidoscópica e a informalidade em voga nas décadas de 1960-1970, aproximando-se da atitude posteriormente desenvolvida, de maneiras contrastantes, pelas “Gothic Voices” de Christopher Page e pelo “Ensemble Organum” de Marcel Pérès.


O resultado é que nunca o canto visigótico ou gregoriano soou assim, com uma linha ritmicamente variada mas lenta, sobriamente burilada, quase pastosa, colocando o texto no centro da meditação; nunca as Cantigas de Santa Maria foram tão compreensíveis, tão sentidas como narração; nunca a canção polifónica do século XV soou tão colorida e subtilmente dinamizada; nunca as canções ibéricas do século XVI foram tão clara e juntamente ditas, tão próximas de nós, tão assumidas como pérolas vocais.


É verdade que as gravações das cantigas de Martin Codax por Helena Afonso (1986) ou das cantigas de Dom Dinis por Paul Hillier, na Harmonia Mundi (1994), soam um pouco como as Vozes Alfonsinas; mas isso explica-se — basta ver quem dirigiu os ensaios.


Manuel Pedro Ferreira

Sem comentários: